domingo, 31 de outubro de 2010

De eleição, deusas e Poseidon


Ishtar, deusa babilônica da fertilidade e do amor
Stella Galvão

Era dia de eleição, de escolhas e opções entre o mais desagradável ou o menos ruim, o de currículo mais portentoso, ou o mais simpático ou empreendedor etc. os adjetivos ficavam por conta do povo do marketing, gente doutora em ardis de toda natureza. E nesse dia Lucília decidiu folgar. Acordou cedo, apesar da noite concorrida da véspera, e colocou sua fatiota de moça séria e idealizada por rapazes em flor, talvez até para fins matrimonais. Sim, era uma daquelas profissionais do sexo que passavam facilmente por uma dama saída de uma dessas escolas anacrônicas que treinam as mulheres para casar. Pois é, mas os noivinhos temerosos do que fariam com o ‘resto de suas vidas’ não se apertavam. Sempre poderiam contar com Lucília e colegas do ofício.

Abandonou os sinais sedutores óbvios (maquiagem forte nos lábios e olhos), cabelão, salto milimetricamente matador, roupa suficientemente reveladora, carão de loba má. Enfim, os signos todos. Sim, na faculdade, Lucília já havia cursado uma disciplina que reunia um pouco de arte, mais um tantinho de filosofia e um caldo de cultura. De modo que sabia de cor e salteado que a
prostituição já fora considerada sagrada na Antiguidade, quando a civilização engatinhava em termos tecnológicos mas não em capacidade de discernir aquilo que agradava ou não ao espírito. Ou à carne.

E o surpreendente, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli garimpado por esta dublê de intelectual, era sua “função agregadora”, a capacidade de “juntar” grupos, de promover a coesão. Algumas almas torcem o pescoço, já imaginando animadas tertúlias reunindo atores sociais desprovidas de vestes, mas Maffesoli voltava à carga, lembrando que algumas mulheres eram veneradas por seu papel de fortalecedoras dos laços das comunidades antigas, até mesmo sob uma aura de misticismo (o “orgasmo sagrado”). Tudo em torno da crença nas Grandes Deusas. Lucília não podia parar de pensar no Kama Sutra e em sua ideia de transcendência até espiritual por meio do encontro de corpos.

Ciente do seu papel gerador de alegrias e confortos espirituais, como profissional dedicada e satisfeita por sua escolha, Lucília buscou na mitologia um algo a mais para um domingo de festejos democráticos. Dirigiu-se à praia mais próxima e se deixou visitar por Poseidon, o deus dos mares, em tarde especialmente inspirada, com ondas que alternavam o carinho mais sutil às bravias, indutoras de desasossego e tempestades íntimas.

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