sábado, 24 de abril de 2010

Prostituição – Corpo como mercadoria


Quadro 'As Damas d'Avignon', Pablo Picasso


Paulo Roberto Ceccarelli*
In: Mente & Cérebro – Sexo, v. 4 (dez/08).

Na troca de favores sexuais que caracteriza a prostituição, elementos sentimentais, como o afeto, devem estar ausentes em pelo menos um dos protagonistas. Nesta profissão, tida como “a mais antiga do mundo”, na grande maioria das vezes troca-se sexo por dinheiro. Mas pode-se cambiar relações sexuais por favores profissionais, informações, bens materiais e muitas outras coisas. Ainda que muitos homens se prostituam, historicamente a prostituição feminina é mais freqüente que a masculina.

A representação social da prostituta varia segundo época e cultura; nem sempre foi acompanhada do estigma que o Ocidente lhe atribui. Nas sociedades em que a propriedade privada inexistia e a família não era monogâmica, por exemplo, o sexo era encarado de forma bem diferente que a nossa, e ao que tudo indica, não havia prostituição. Já em algumas civilizações tratava-se de um ritual de passagem praticado pelas meninas ao atingirem a puberdade; em outras, os homens iniciavam sexualmente as jovens em troca de presentes.

Além disso, a percepção dessa prática muda enormemente segundo a moral vigente. A posição social que a prostituta ocupa hoje na sociedade ocidental é tributária da visão que temos da sexualidade, algo bem diverso da Antiguidade, em que não havia a noção de pecado ligado ao sexo.

De sacerdotisas a hereges
Algumas formas de prostituição (do latim “prostituere”: “colocar diante”, “à frente”, “expor aos olhos”) já foram vinculadas a divindades, como nas primeiras civilizações da Mesopotâmia e do Egito, onde sacerdotisas prostitutas, consideradas sagradas, recebiam presentes em troca de favores sexuais.

Na Grécia antiga, havia as hierodule, mulheres sagradas que ofereciam serviços sexuais em ocasiões especiais, mas não correspondiam exatamente ao que entendemos por prostitutas. Eram vistas como a encarnação de Afrodite e respeitadas pela população e pelos governantes por evocarem o amor, o êxtase e a fertilidade. Embora fossem escravas como as deikteriades (prostitutas cujos donos eram cidadãos comuns), tinham mais regalias que elas.

Na antiga civilização grega, a prostituição fazia parte da paisagem cotidiana, era um meio de obtenção de rendimento igual a qualquer outro e uma prática controlada pelo estado. As prostitutas deviam pagar altos impostos e vestir-se de forma a serem identificadas como tal. Entre as várias categorias, havia as hetairas, de grande relevância social, conhecidas pela inteligência, esperteza na administração dos bens e competência nas articulações políticas. Freqüentavam livremente o universo masculino e participavam das atividades reservadas aos homens. Trabalhavam nos bordéis do Estado, sem sofrerem qualquer represália. As hetairae eram formadas em escolas nas quais as aspirantes aprendiam a arte do amor, a literatura, a filosofia e a retórica, tornando-se as mulheres mais instruídas da Grécia.

A prostituição era uma profissão tão rentável que algumas mães incentivavam as filhas a fazer carreira. Aspásia, por exemplo, tornou-se uma prostituta famosa e admirada pelas qualidades intelectuais a ponto de o grande Sócrates levar seus discípulos para ouvi-la – o contrário do que ocorria com as jovens destinadas ao casamento, que se dedicavam exclusivamente ao trabalho doméstico. Curiosa expressão da legendária democracia grega: só as prostitutas tinham acesso ao conhecimento.

Na cultura judaica, por sua vez, a prostituição era severamente punida; a lei mosaica previa sanções severas aos praticantes, inclusive com pena de morte. Na prática, entretanto, havia certa tolerância como o mostra a história de Raabe – prostituta salva pela graça de Deus – relatada no livro de Josué. A moral cristã sempre condenou tal prática, que também era tida como a responsável pela disseminação de doenças sexualmente transmissíveis – sífilis, por exemplo.

A partir do século XII o amor cortês passou a regular a sociedade européia. Em nome de interesses político-econômicos, as uniões passaram a ser arranjadas, não se levando em conta os sentimentos mútuos entre os parceiros, o que contribuiu para ampliar a prática da prostituição, que passou a ser regulamentada e protegida pela lei. Em muitas cortes, as prostitutas alcançaram grande poder, tendo conhecimento de questões estratégicas.

Com a Reforma religiosa no século XVI, o puritanismo passou a controlar os costumes e ditar a moral. A Igreja Católica lançou mão, então, de seu arsenal teológico para lidar com o problema de prostituição. Em conseqüência da ação conjunta das igrejas católica e protestantes, a prostituição caiu na clandestinidade sem, contudo, ser eliminada: cortesãs continuariam a existir nas cortes européias e colônias. A Revolução Industrial trouxe um elemento significativo à prostituição, pois as mulheres tiveram de enfrentar condições desiguais no trabalho em relação aos homens. Prostituir-se em troca de favores, de melhores condições de vida, revelou-se uma opção.

Valores revistos
Os primeiros movimentos internacionais contra a exploração sexual de mulheres e adolescentes começaram no final do século XIX. Em 1921, a Liga das Nações designou um comitê para tratar o problema do tráfico de mulheres e crianças; em 1946, a ONU adotou uma convenção a fim de erradicar a prostituição.

As questões tornaram-se mais agudas com a epidemia da AIDS na década de 80, exigindo providências urgentes e eficazes. Se as medidas profiláticas de higiene e o advento dos antibióticos contribuíram para diminuir a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, a AIDS representava uma ameaça fatal tanto para as prostitutas quanto para os clientes, obrigando o poder público a intervir. Não se podia mais, sob pretexto moral, negar a existência de certas camadas do tecido social, ignorar o comércio marginal do sexo. Como conseqüência, ocorreu uma reorganização dos costumes e valores.

Nos últimos anos, a grande maioria dos países ocidentais adotou medidas destinadas a descriminalizar a prostituição. Alguns países europeus, como Alemanha, Países Baixos, Dinamarca e Noruega legalizaram a prostituição; em outros, como no Reino Unido, é tolerada. Em Portugal, a prostituição não é ilegal, desde que não haja incentivo para essa atividade. Na França, não é legal nem proibida, embora o proxenetismo seja uma infração. Outros países ainda a penalizam, como a Suécia, onde vender sexo é tão ilegal quanto comprá-lo. Resultado: prostituta e clientes são punidos com até seis meses de prisão. Nos Estados Unidos a prostituição é ilegal em praticamente todo o território.

Nos países mais pobres, assolados pela miséria, a prostituição continua presente e as tentativas de melhorar as condições de vidas das prostitutas têm sido ineficazes. No Brasil a prostituição adulta é legal na medida em que não existe lei que a proíba, mas é incriminada quando existir incitação pública ao ato sexual. Igualmente, o incentivo à prostituição e o comércio do sexo são atividades delituosas.
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* O autor é psicólogo e psicanalista em São Paulo.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Duas vezes por ciúme












Elnatana Barreto


Homenageando Livia Andrade

Dizem que “isso é coisa do destino”, há quem afirme que “não passou de mera coincidência”, poderia ser também algo traçado por Deus. Eu imagino que seja bizarro e nada mais.

Eles namoraram uns dois ou três anos, mas tudo acabou em briga. Ela muito ciumenta, ele muito amigo, amável, solidário e carinhoso com todos (e todas). Ela não concordava com aquela solicitude dele, ele não agüentava as cobranças dela. Acabou-se o que era doce.

Ele chorou. Tirou o cavanhaque, reformou o guarda-roupa, trocou de carro, pediu demissão do emprego. Ela viajou com as amigas, divertiu-se até cansar, voltou com outro e depois outro, e mais outro... Nem se toparam, pareciam distantes, como o Brasil do Japão, mas na realidade estavam na mesma cidade, só não se encontravam, nem por “mera coincidência”.

Farrista, ela resolveu ir à praia (a mais divertida da cidade) com uma turma de amigos, jogar bandeirinha (a mais divertida brincadeira de criança): era gente pra todo o lado, gritos estrondosos, uma bagunça só. Engraçado é pensar que a praia mais divertida para ela, era também a mais bonita para seu romântico ex-namorado, que por sinal também estava se divertindo no maior amasso, com beijos longos e calorosos, num clima bem quente em plena madrugada.

Sua amiga insiste em querer ver que casal era aquele tão afogueado. Curiosa, ela concorda. Chegando perto, sua amiga percebe um olhar brilhando, algumas lágrimas rolando rosto afora, duas pernas bambas e mãos trêmulas. Ela queria voltar, ir embora, aos brados, aos prantos, mas bem rápido.

Era ele. Morreu de ciúme. Ele não poderia estar com outra, afinal sempre foi louco por ela, nem combinava com outra companhia. Gritou, chorou de raiva, ligou pra ele no dia seguinte.
-Eu nunca deixei de te amar, ele falou.
Ela voltou. Apaixonados como nunca,e sem pensar em outra coisa, se amaram como sempre. Não se sabe ao certo se foi coincidência ou obra de um ciúme arrependido.
Mas que eles foram felizes, isso sabe-se ao certo.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Fascínio e agruras do casamento

Trecho de reportagem desta semana da revista Época

O casamento. A boda. O matrimônio. O que essas palavras evocam são imagens tocantes e cenas de festa. Uma noiva sorrindo à beira de um lago, radiante em seu vestido branco de cetim que, embora ela não saiba, foi usado pela primeira vez pela rainha Vitória, da Inglaterra, em seu casamento com o príncipe Albert, em 1840. De lá para cá, as noivas no Ocidente vestem branco. E são rainhas por um dia.

Mas o casamento, a boda, o matrimônio – e mesmo a forma laica e informal de compromisso, a coabitação –, não se resume a uma festa. Depois da noite de núpcias, começa, para todos os casais, aquilo que o psiquiatra Alfredo Simonetti, ligado ao Hospital das Clínicas de São Paulo, descreve como “o sofrimento de viver a dois”: uma luta diária contra a natureza humana, que, ao mesmo tempo que atrai as pessoas para a vida conjugal, faz com que elas, rapidamente, se desapontem com as dificuldades do cotidiano a dois.

As estatísticas brasileiras são eloquentes a respeito tanto do fascínio quanto das agruras do casamento. Cerca de 1 milhão de pessoas se casam todos os anos no Brasil – e pouco mais de 250 mil se separam no mesmo período. Logo, de cada quatro casamentos, um termina em separação. Embora a estatística seja adversa, o risco não é suficiente para fazer as pessoas deixar de casar. Os números do IBGE mostram que a quantidade de uniões por 100 mil brasileiros aumenta um bocadinho a cada ano.

Entre 1998 e 2008, o número de casamentos cresceu 34,8%, superando em 13 pontos porcentuais o crescimento vegetativo da população nessa faixa etária. Os divórcios e as separações, no mesmo período de dez anos, cresceram menos, 33%. A diferença é pouca, mínima na verdade, mas sugere que o sonho de casar está mais em alta que a vontade de se separar.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Quanto mais morno, mais normal?

Stella Galvão

Sexo e casamento, uma combinação condenada à temperatura morna? É o que aponta um longo estudo norte-americano, que tem registrado uma freqüência muito pequena, naquele país, de atividade sexual para quem divide uma cama com seu par, noite após noite. No Brasil, a freqüência é um tantinho superior, mas os brasileiros também se ressentem do peso da rotina conjugal. É esse gênero de performance que é analisada pela psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.

Um casal casado faz sexo 58 vezes por ano, segundo uma organização que avalia o comportamento dos norte-americanos desde 1972. E no Brasil?
Carmita Abdo - O Estudo da Vida Sexual do Brasileiro, coordenado por mim em 2003 e depois, o Mosaico Brasil, que coordenei em 2008, confirmaram que a freqüência de um casal brasileiro, numa fase ativa da vida sexual, é em média de duas a três relações sexuais por semana, o que dará mais que 58 relações ano. Isso se refere a um casal na faixa dos 40 anos. A média obtida pelo levantamento norte-americano se refere à freqüência de um casal numa fase mais avançada da vida, em torno dos 55-60 anos de idade para o Brasil. O Estudo da Vida Sexual do Brasileiro ouviu aproximadamente 7 mil pessoas, enquanto o Mosaico reuniu uma amostra superior a 8 mil homens e mulheres.

As pesquisas têm revelado que até 15% dos casados não façam sexo com o cônjuge ao longo de seis meses. Em casos, assim, é comum ambos se acomodarem com a situação?
Carmita - O que podemos dizer é que mais comumente as mulheres têm desinteresse sexual numa determinada etapa da vida, geralmente com a chegada do climatério e da menopausa, por volta dos 50 anos. Nessa faixa etária, é relativamente freqüente ela se desinteressar e até ficar sem sexo ou espaçar mais a freqüência com que faz sexo. Já os homens raramente perdem a vontade e o interesse por sexo, mesmo em idade mais avançada. No Brasil, a média de pessoas que vivem sem sexo, que não pensam nem se preocupam com o assunto, é da ordem de 10% da população sexualmente ativa e, deste universo, 7,7% é formado por mulheres e 2,5% por homens.

Por que o sexo torna-se morno no casamento?
Carmita - Fatores psicoemocionais interferem bastante, ou seja, não haver mais desafios, a situação de maior estabilidade no relacionamento, de ausência de novidade. A rotina, portanto, é o que acaba acomodando esses casais e tornando o sexo menos exuberante. Por outro lado, sabemos que casais que têm relação mais longa, que constituem família, passam a ter impedimentos para um sexo livre, sem horário pré-determinado. Quando as tarefas se multiplicam, muitas vezes com carga maior de trabalho para fazer frente às despesas familiares, o sexo acaba se tornando menos entusiástico, mas os casais podem buscar saidas como tirar férias ou criar o hábito de frequentar locais de maior privacidade.

É possível se falar hoje em casamentos assexuados, nos quais as pessoas permanecem juntas mais por conveniências sociais, econômicas etc.?
Carmita – Sim. Existem casais que terminam optando por isso, não necessariamente de forma explícita. Às vezes, eles concordam que não têm mais interesse sexual um no outro, mas definem que permanecerão casados por conveniência, não apenas econômica, mas também prática, para terminar a criação dos filhos, porque gostam da convivência, porque existe amizade e confiança entre eles. Ocorre de fazerem até acordo que prevê vida sexual fora do casamento, mas isso é menos comum. Na maioria das vezes, os casais simplesmente deixam de viver a vida sexual e não tornam esses acordos tão declarados.

Quando se chega uma fase praticamente assexuada, ainda é possível reacender a atração entre o casal?
Carmita - Sim, há casais que conseguem superar, voltando a se valorizar, passando a se cuidar mais, mudar de atitude, quando identificam que as causas do desinteresse sexual foram a negligência consigo mesmos e com o parceiro. Por exemplo, uma mulher - que tenha tido na juventude dificuldade em se entregar, cujo sexo era difícil e não conseguia trazer prazer - com a maturidade, essa mulher pode adquirir mais desenvoltura e reacender a atração de seu companheiro. Então, a maturidade não necessariamente baixa o interesse sexual dos parceiros, mas pode ser um elemento de estímulo. Da mesma forma, um homem que teve um desempenho satisfatório quando jovem, mas à medida que o tempo foi passando, passou a valorizar muito a carreira, pode, no momento em que atinge estabilidade profissional, voltar a ser interessante e sedutor porque passa a investir mais nesse aspecto de sua vida. Mas é claro que há casamentos que duram o tempo que poderiam durar e não têm mais como serem retomados.

A mesma pesquisa identificou uma freqüência três vezes menor da mulher em buscar relações casuais. A mulher trai menos por freio cultural apenas?
Carmita - Por freio cultural, sim, mas também por uma série de eventos no curso da vida dela que o homem não enfrenta e cuja ausência o libera muito mais. A mulher engravida, amamenta, entra numa fase de menor interesse sexual com o climatério, menstrua, o que limita o número de dias nos quais ela está disponível para o sexo. Influem, portanto, a parte biológica, o freio cultural e o aspecto mais psicológico da mulher. Quando ela busca outro relacionamento, geralmente não está procurando apenas prazer, mas um novo relacionamento. Já no caso da infidelidade masculina, uma situação arraigada à cultura latina, os homens não se percebem como infiéis. Para boa parte deles, infidelidade significa envolver-se afetivamente com outra mulher que não a sua. Portanto, não estaria sendo infiel o homem que apenas faz sexo com outra mulher, como alegam. Nos dias de hoje, há ainda o dado de que cada vez mais mulheres fazem sexo por prazer meramente sexual e para usufruir de um relacionamento íntimo satisfatório. Essas não correspondem à maioria, mas sem dúvida compõem parte do universo feminino atual, que se permite encarar o sexo com maior liberdade.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Motéis e cena urbana

Elnatana Barreto

Um grupo de estudantes do curso de Publicidade e Propaganda da UnP, ao realizar uma pesquisa sobre os motéis localizados no bairro de Candelária (Natal), no segundo semestre/2009, percebeu a necessidade de entender mais amplamente questões relacionadas ao sexo, prazer, desejo e fantasias.

Entendidos como ambientes propostos para a realização do prazer, os motéis deixaram de acolher motoristas viajantes – destinação dos primeiros estabelecimentos desse gênero nos EUA – para privilegiar a clientela em busca do prazer sexual. Para aperfeiçoar seus ambientes e atender à busca por encontros alimentados pelo desejo e sedução, foi preciso entender as vontades explicitas e implícitas da clientela.

Entre os grandes pensadores produzidos pelo século XX, o psiquiatra austríaco Sigmund Freud deixou um corpo teórico de grande envergadura sobre nossas pulsões primárias relacionadas ao prazer. O grande objeto de desejo do ser humano é a sua imaginação. O outro e a atmosfera em que ele se encontra equivalem tão somente à complementação da projeção de uma vontade primeira. O sexo e a fantasia são necessidades que se abastecem mutuamente.

Como disse Freud, “as forças motivadoras da fantasia são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória”.

Na sociedade contemporânea, hedonista por excelência, o exercício do prazer é algo já vinculado ao cotidiano, à fruição de momentos fugazes. A fantasia alimentada pelos motéis, assim, é a de estimular a manifestação da libido livre de impedimentos e de restrições morais. Esses ninhos de desfrute prazeroso costumeiramente localizam-se em lugares estratégicos, mas cada vez mais inseridos na paisagem urbana.

Embora convertidos à dinâmica urbana, os motéis seguem inspirando ideias de perversão sexual. Coube a Freud classificar o ser pervertido como aquele capaz de realizar algo considerado anormal para suprir seus desejos. São pessoas que se apropriam livremente de fantasias para levar ao extremo a sua busca por prazer. Incluem-se práticas diversas como o sadomasoquismo, a pedofilia e recursos que apelam ao fetichismo para a intensificação do gozo físico.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Historinhas de alcova

Stella Galvão

Nadja era psicóloga e se orgulhava do divã concorrido, mas havia uma lacuna: ela sonhava encarnar uma versão do cronista Nelson Rodrigues escrevendo relatos picantes para afixar pelas paredes do consultório ou despachar para sua lista de e-mails. Já tinha alguns casos reunidos, mas faltava-lhe um certo ‘quê’ para se aprofundar nos vãos das partes pudentas. Ocorre que a escriba era inclinada ao barroco. Adorava um palavreado rebuscado, essa discípula de Machado de Assis, Stendhal e Kafka. Ainda assim, presa que era dos vocábulos e verbalmente alheia a uma boa sacanagem, ela iniciou sua tímida incursão na ficção.

Camila
Moça de família conservadora, o recato em figura de gente, educada para ser boa esposa e mãe. Casou-se e o marido era o protótipo do bom partido: bonito, educado e bem-sucedido. No começo, a paixão era o alimento da vida íntima. Passado o encanto dos primeiros meses, Camila passou a achar o marido pouco criativo na cama. Evitava tocar no assunto porque ele não gostava de 'discutir a relação'. Depois de uma discussão em que ele a chamou de 'frígida', resolveu procurar ajuda de uma terapeuta sexual. Descartados problemas fisiológicos, ela tentou levá-lo à terapia de casal. Diante da recusa, a relação ficou insustentável. Camila agora gerencia uma sex shop onde instrui clientes a se exercitarem em jogos eróticos, testados ruidosamente por ela diante do espelho.

Juarez
O caso de Juarez é o que os junguianos chamam de arquetípico, muito comum, retrato de uma época, de um subgrupo, de um vicio cultural. O comerciante casou-se cedo com a primeira namorada 'séria'. No começo, a vida do casal era até movimentada. Mas logo veio o primeiro filho. Depois do segundo bebê, os encontros só aconteciam burocraticamente uma vez por semana. Ele já chegava em casa sem disposição. Daí para a perda da vontade foi um pulo. Juarez recorreu a um urologista. Sentia desejo, mas não conseguia passar da vontade à ação. Foi orientado pelo médico a tomar a pílula azul. Ele olha todos os dias para a bula cheia de restrições e não se decide. Já o olhar mortiço para a dona do cafezinho, portadora de glúteos de dimensões avantajadas, esse, sim, é cheio de disposição.

Eduardo
Já Eduardo sofria de um drama de outra envergadura. Desde adolescente ele achou que faria sucesso com as mulheres, devido ao volume um tanto quanto saliente do cuecão de seda mista. Casou-se por volta dos 25 anos, mas nunca conseguiu qualquer performance digna de nota. Dali em diante, a duração das relações com a mulher era cada vez menor. Tudo terminava em segundos. Com o casamento abalado, procurou ajuda de um psicólogo. Depois de algumas sessões e maior abertura para conversar com ela sobre suas dificuldades, ele já consegue se controlar e começou a enxergar o mundo sob outra perspectiva que não a do tamanho do órgão sexual. Mas, nos banheiros masculinos, não se contém em observar seu próprio jato, de olho nas dimensões e formatos alheios.

Ana
Divorciada, Ana conheceu um homem que lhe encantou com a conversa envolvente. Na cama, aparentemente tudo funcionava muito bem. Meses depois, passou a estranhar que ele evitasse as carícias preliminares e definisse dois tempos para o orgasmo: somente depois que ela chegava lá, era a vez dele começar o próprio ritual. No começo, até gostava da dupla sessão, só por contrariar a rotina, mas cansou de tentar ser duplamente sexy. Tentou conversar - ele disse que de falta de sexo ela não podia se queixar. A situação colocou o casório em uma corda bamba. Angustiada, Ana soube das oficinas oferecidas por uma Ong feminista para orientar mulheres a explorar potenciais prazerosos. Treinou os exercícios pélvicos e novas posições, cheia de vontade de entrar em ação bem longe daquele duplo expediente corriqueiro.

domingo, 11 de abril de 2010

Era pra ser um comentário, mas...

Daniel Gonçalves de Menezes

Cara Stella,
O teu blog é bem legal! Não sei se é do seu conhecimento, mas há alguns estudos antropológicos sobre o assunto.
Edmilson Lopes, professor da UFRN, escreveu um livro interessante denominado: "Natal: a construção social da cidade do prazer". A obra reflete sobre questões que vão ao encontro do seu interesse de pesquisa.
Há, além disso, um número da revista Cronos, do programa de pós-graduação de ciências sociais da ufrn, que apresenta um artigo de dois portugueses que vieram a natal com o objetivo de fazer uma pesquisa de campo sobre o fluxo dos europeus em nossa cidade e o tema da prostituição.
O texto é legal porque destrói um conjunto de noções que os natalenses cultivam acerca da prostituição em nossa cidade.
Ao contrário do que muita gente imagina, as prostitutas são pessoas conscientes do que fazem (o discurso que vitima a prostituta é extremamente conservador porque retira a capacidade de agência dessas mulheres), não são acometidas por doenças, já que estão extremamente preocupadas com DSTs e sentem prazer - por que não?! - em várias das relações sexuais que mantém com os seus clientes, acabando, em alguns casos, inclusive, em casamento.
É impressionante, relatam os portugueses, como as autoridades do RN têm uma postura ambígua sobre o assunto. Rechaçam publicamente a prostituiçao e de modo velado trabalham, utilizando estratégias publicitárias e turísticas, para promover o mercado sexual no RN.
Numa perspectiva claramente foucaultiana, ao tentar dar voz ao discurso das prostitutas, o texto ainda faz a irônica pergunta, - é melhor trabalhar 10 horas por dia em uma loja no shopping para ganhar 500 reais, aguentando todo tipo de abuso, ou fazer alguns programas mensais e faturar cerca de 3 mil reais?
O fato é que o mercado de bens sexuais já deveria ter sido regulamentado. Seria melhor para as profissionais do sexo, que estariam amparadas pelo estado; e seria melhor para a nossa cidade, que trataria a questão de modo mais sóbrio.
Porém, expressando o atual estágio reflexivo em que se encontra nossa cidade, os portugueses receberam, na época em que vieram a Natal dar prosseguimento a uma pesquisa mundial sobre o assunto, o título de "persona non grata" por parte dos nossos competentes vereadores..

O ponto

Stella Galvão

Ela tinha ouvido falar vagamente. Era um ponto. Não, uma região, ou melhor, uma sensação ímpar. Uma coisa assim de vagar pelas estrelas, ver constelações, embarcar em cometas. O primeiro namorado nem chegou perto, um bobinho preocupado em apenas descobrir meios de acessar alguma área que, também ele, pouco conhecia. Houve depois aquele universitário empenhado em livrá-la da pecha virginal, o que conseguiu com muita delicadeza e ternura, diga-se. Faltou mesmo a dramaticidade do sangue derramado, o que ela lamentou lá no íntimo, dada que era a excessos. Sentia faltar algo de fisiológico, de primal. Aí ela decidiu ir à luta.

Um cordão de varões se sucedeu nessa onda experimental, naturalmente com todos os cuidados que cercam uma vida sexual menos arriscada. Todos, à exceção de um ou dois de saudosa memória, apenas cumpriram tabela, como se diz, limitando-se às incursões mais detalhadas junto ao terreno anatômico. O ponto permanecia, digamos assim, em aberto. Quando casou, o moço até que tentou prospectar a região, mas pouco sabia de ponto, exceto algumas noções geométricas. Até riu e escarneceu da fantasia dela, alimentada pela leitura na adolescência da descoberta de um médico alemão. O sobrenome dele começava com G, daí o batismo do ponto, que seria o encontro de nervos e muitos vasos irrigados fartamente.

Era lá, nas proximidades do clitóris, ponto de notórias alegrias sexuais, que o ponto, uma vez alcançado, daria em troca uma miríade orgásmica. O casamento durou uma década. Findou não exatamente por obra da não descoberta mas, na sua intimidade expectante, ela não negava que, sim, aquela frustração pesou. Respirou fundo e engatou nova marcha afetiva, até que um dia...

Estava com seu novo amor num desses hoteizinhos baratos do centrão de uma grande cidade, outra fantasia antiga que finalmente via realizar-se, quando repentinamente teve a clara percepção de um espoucar de muitos fogos de artifícios, criando uma atmosfera de arco-íris. A coisa toda durou um tempo improvável em que ela sentiu-se transportar para outra dimensão, tal o estrondo íntimo. Então ele sussurrou-lhe no ouvido: achei seu ponto! Ela o olhou, instantaneamente, apaixonada e feliz. Era um daqueles momentos que se cristalizam lá no mais íntimo do ser pela impossibilidade de replay. Ela pouco se importava se aquela história seria duradoura ou não. Se amanhã se encontrariam ainda sob o frêmito da paixão recente. Às favas com os planos. O que contava era que o ponto chave para acessar aquele tesouro finalmente saíra do terreno ficcional. E era desfrutável, se era!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Do livro ‘Eu, mulher da vida’

Tadeu de Oliveira

O cotidiano desumano de São Paulo revela os gritos silenciosos de quem vive à margem da sociedade. Eles não se propagam no ar em sons, mas revela a dor de vidas estraçalhadas pelo tédio em olhares gélidos, rostos inexpressivos e gestos mecânicos na busca pela sobrevivência, como as filas nos pontos de ônibus e a dos desempregados mendigando salários hostis.

É na escuridão das ruas da capital paulista que nasceu uma nova vida. Pelos desenganos de uma vida inteira, pela angústia da existência nas veias, morre Otília, moça de classe média e nasce Gabriela, prostituta por opção.

Este o principal ponto do livro Eu, mulher da vida (Editora Rosa dos Tempos), obra que retrata as experiências de Gabriela Silva Leite no mundo da prostituição. A trajetória de Gabriela, desde suas primeiras experiências sexuais, passando pela sua estadia em pontos famosos de prostituição em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte até a luta política por melhores condições de trabalho para as prostitutas, vem à tona em um texto cujo caráter informal propõe uma conversa da autora com o leitor.

A opção de Gabriela desmistifica vários preconceitos existentes com a profissão. Virar prostituta sempre foi encarado pela sociedade como uma alternativa para suprir exclusivamente necessidades financeiras. Segundo as “masturbações ideológicas” da esquerda, como diz Gabriela no livro, as prostitutas continuam a ser vistas como vítimas do sistema capitalista. Claro que essa condição está presente em muitos relatos de prostituição, mas reduzi-la a uma versão única só retrata a face hipócrita da sociedade com relação à prostituição.

Afirmar que ela pode ser uma escolha incomoda uma sociedade ainda marcada pelo puritanismo e envergonha as prostitutas, determinando um complexo de inferioridade. A prostituta é, portanto, uma mulher como outra qualquer, com sentimentos e desejos. A felicidade tem várias faces - cada um escolhe a sua.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Calos e Afetos

Stella Galvão

Conheceram-se numa sexta-feira qualquer de um verão meio opressivo. Chovia a cântaros. Ela foi ao encontro dele com expectativa próxima de zero. Tudo porque ele havia comentado ao telefone, em contato prévio e fortuito, que a voz dela era 'estranha'. Nunca tinha ouvido semelhante despautério, nem mesmo de uma fonoaudióloga que tinha consultado por razões outras.

No café, ele cravou o par de olhos meio esverdeados naquela criatura já meio farta desses tais primeiros encontros. Ele foi logo dizendo que sim, já havia contraído núpcias, duradouras por sinal, mas que tinham entrado em colapso fatal. Estava de peito aberto para deixar-se levar afetivamente por alguém. Especialmente porque sofria de arritmia cardíaca, com batimentos descompassados, e atribuía parte do problema ao fato de não ter alguém por quem palpitar e desejar, santa incoerência, com o coração aos saltos. Pronto, ela já se imaginou bailando com o tipo num salão qualquer.

Estava tomada de tal ardor romântico que dois cafés, um deles com conhaque duplo, pareceram-lhe insuficientes. Logo sorveu dois cálices de bom e forte licor. Assim afogueada, convidou o rapaz para conhecer os estofados do veículo que a levava e a trazia. Correram meio esbaforidos, ambos quarentões. Chegando aos tais bancos, ela como que desmaiou, pezinhos já despidos do tamanco para torná-la sete centímetros menos minúscula.

O moço, entre enternecido e constrangido, entendeu a senha. Disfarçando a má vontade de tocar um pé recém-conhecido e cujas condições de assepsia ele desconhecia, dedicou-se a apertar o dedão do pé direito. Segundos depois, ouviu-se um ruído estranho de calo sendo extraído. Não é que o tipo tinha formação em podologia e mesmo sem instrumental operava façanhas?

Nem imaginava o que diria da proeza o ortopedista que havia consultado para tentar dar cabo de joanetes e outros incômodos persistentes na base do pé. Também nunca supôs que seria guindada ao amor por obra dos calos, mas assim foi. Ele os combatia, desejoso que florescessem com o andar da carruagem puxando os dias. Ela só temia a cura definitiva. Então, ele seguiria a torrente de calosidades mais próxima.

Decidida, adotou o hábito de escalar superfícies ásperas. Descalça, por vezes sangrando. Pedras com escarpas, bem íngremes, eram procuradas por todo o litoral.
Só comprava sapatos um número menor que o dela, essa Cinderela às avessas. Deixava-se pisotear em ônibus, liquidações e outros ambientes apinhados de gente. Sufocava o grito, canalizando-o para o compartimento dos afetos. Fato é que sempre havia um calo remanescente, prova do amor dela e objeto da adoração dele. O senhor dos calos e a senhora que os cultivava, enfim felizes.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Baile dos mascarados

Stella Galvão

O cabo Josias, claustrofóbico, deserdou. O soldado Josenildo escafedeu-se para a lagoa de Extremoz por não suportar a ideia de interromper o fluxo de ar entre seus orifícios nasais e o meio externo. A segunda-feira pós carnaval atemporal seria pródiga em papeis com timbre de doutores atestando o estado gravemente infeccioso da dupla que deveria zelar pela segurança dos foliões. No lugar disso, foram cuidar de se expor a vírus menos danosos. Indiferentes a esses pormenores, os pulantes só paravam de tirar os pezinhos do chão, obedecendo ao comando do microfone, quando soava o gongo de fim da farra de um abadá. Nessa trilha feita de corpos suados, latas de cervejas e muito riso, oh, quanta alegria, as inocentes máscaras cirúrgicas eram nada mais que um acessório pendurado no pescoço. Volta e meia, obedecendo ao comando dos câmeras de TV, elas subiam ou desciam ao sabor das circunstâncias.

No palanque das autoridades excessivamente ornamentadas, não se via sinal de burca a burlar o assédio viral. É claro, quem se arriscaria a salgar o mel dos foliões em pré-ano eleitoral? Nem insanos de plantão, ainda mais já acompanhados do bloco marqueteiro.

Para horror do povo da saúde, em pânico com a iminência de uma epidemia e o risco de plantões redobrados, os tolos locutores das TVs locais abordavam pseudo-celebridades com a pergunta padrão: Já beijou? Em resposta, muitas gargalhadas anunciavam a inevitável troca de fluidos bucais, fértil campo para disseminação de microorganismos, essas criaturas ínfimas novamente guindadas à fama por obra de um conjunto de letras e números. H1N1 era o vilão. Quem haveria de dizer? De longe, ainda que disperso nas petéquias natalinas da árvore de Mirassol, ele parecia inofensivo. Como os melhores e mais desejados vícios e gostos inconfessos.

No meio da turba contente por protagonizar alegrias pré-fabricadas em dose dupla ano após ano, o verdadeiro mascarado era um cidadão insuspeito, destes que não rompem cordões nem se embriagam até o coma. No passado, talvez. Hoje um homem de família, embora uma família esgarçada, ele se distraia em engabelar uma cinquentona já um tanto quanto exaurida e prestes a dormitar por décadas. O que o animava era a possibilidade da queda da bastilha, o pobre anacrônico, séculos depois do verdadeiro acontecimento na França pré-revolucionária.

É verdade que a lua se insurgia, radiosa, por sobre o cenário mimoso. Que dali a algumas horas nada mais restaria além de toneladas de lixo, resíduos humanos pós sessões explícitas de esfregaço e uma certa melancolia que se instala após uma explosão de pulsões. Este carnatal seria mesmo inesquecível: que gênio do marketing teria instilado o medo e o desejo de desafiá-lo para reunir mais gente? Se assim a turba agia com o vírus, por que não o fazia com os germens presos às ferragens da política torpe?