quinta-feira, 8 de abril de 2010

Calos e Afetos

Stella Galvão

Conheceram-se numa sexta-feira qualquer de um verão meio opressivo. Chovia a cântaros. Ela foi ao encontro dele com expectativa próxima de zero. Tudo porque ele havia comentado ao telefone, em contato prévio e fortuito, que a voz dela era 'estranha'. Nunca tinha ouvido semelhante despautério, nem mesmo de uma fonoaudióloga que tinha consultado por razões outras.

No café, ele cravou o par de olhos meio esverdeados naquela criatura já meio farta desses tais primeiros encontros. Ele foi logo dizendo que sim, já havia contraído núpcias, duradouras por sinal, mas que tinham entrado em colapso fatal. Estava de peito aberto para deixar-se levar afetivamente por alguém. Especialmente porque sofria de arritmia cardíaca, com batimentos descompassados, e atribuía parte do problema ao fato de não ter alguém por quem palpitar e desejar, santa incoerência, com o coração aos saltos. Pronto, ela já se imaginou bailando com o tipo num salão qualquer.

Estava tomada de tal ardor romântico que dois cafés, um deles com conhaque duplo, pareceram-lhe insuficientes. Logo sorveu dois cálices de bom e forte licor. Assim afogueada, convidou o rapaz para conhecer os estofados do veículo que a levava e a trazia. Correram meio esbaforidos, ambos quarentões. Chegando aos tais bancos, ela como que desmaiou, pezinhos já despidos do tamanco para torná-la sete centímetros menos minúscula.

O moço, entre enternecido e constrangido, entendeu a senha. Disfarçando a má vontade de tocar um pé recém-conhecido e cujas condições de assepsia ele desconhecia, dedicou-se a apertar o dedão do pé direito. Segundos depois, ouviu-se um ruído estranho de calo sendo extraído. Não é que o tipo tinha formação em podologia e mesmo sem instrumental operava façanhas?

Nem imaginava o que diria da proeza o ortopedista que havia consultado para tentar dar cabo de joanetes e outros incômodos persistentes na base do pé. Também nunca supôs que seria guindada ao amor por obra dos calos, mas assim foi. Ele os combatia, desejoso que florescessem com o andar da carruagem puxando os dias. Ela só temia a cura definitiva. Então, ele seguiria a torrente de calosidades mais próxima.

Decidida, adotou o hábito de escalar superfícies ásperas. Descalça, por vezes sangrando. Pedras com escarpas, bem íngremes, eram procuradas por todo o litoral.
Só comprava sapatos um número menor que o dela, essa Cinderela às avessas. Deixava-se pisotear em ônibus, liquidações e outros ambientes apinhados de gente. Sufocava o grito, canalizando-o para o compartimento dos afetos. Fato é que sempre havia um calo remanescente, prova do amor dela e objeto da adoração dele. O senhor dos calos e a senhora que os cultivava, enfim felizes.

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