sábado, 16 de outubro de 2010

Sangue, suor e antropofagia


O Beijo, escultura de Constantin Brancusi, 1909.
Stella Galvão

Ele tinha um jeito de olhar firmemente , bem dentro dos olhos dela. A princípio ela sentiu um ligeiro estremecimento, que com o andar da carruagem transformou-se em desconforto. Onde aquele homem queria chegar perscrutando-a daquele jeito quase invasivo? Sentia uma forte presença sanguínea no rosto, embora ela não percebesse, sob o disfarce da morenice dela. Entre uma tagarelice e outra, ela esperava, expectante, imaginando o momento em que ele a tomaria nos braços, os olhos se confundissem e as bocas se unissem num balé sincrônico, úmido e penetrante.

O chá foi apenas um pretexto, assim jogado como quem lança uma pipa no ar, capturado numa fração de tempo em que ela percebeu que ele relutava em partir. Então avançaram nos cômodos, ela mostrou mais textos para os quais ele apenas meneava a cabeça, em mudo consentimento. E olhava, como olhava. Diante do chá, as pupilas dançavam, se dilatavam e ensaiavam movimentos indiscretos. Ela sorveu alguns goles, tentando apaziguar sua alminha àquela altura toda aflita. Então ele lançou-se na direção desejada.

As bocas estavam agora grudadas e ela sentia-se examinada em todas as porções mandibulares, linguais, interdentais. Ele mordia-lhe a mucosa, os lábios, a língua, quase alcançando as amígdalas. Simplesmente a degustava, ela se sentindo como que canibalizada por aquela boca que avançava e tomava a sua de assalto, completa e amplamente. Um desfalecimento que durou algumas horas. Com essa cidadela bucal conquistada, ele avançou com mãos e dedos pelos vãos daquele corpo que se colocava em suas mãos grandes. Os toques ora confundiam-se com o de fadas, tão suaves, ora avizinhavam-se ao de deuses em fúria. Ela nem procurou resistir. Simplesmente inexistia algo que impusesse alguma dificuldade ao avanço. Por alguns momentos ele só a olhava, e isso bastava para ela desejar que aquele momento se cristalizasse como um desses instantes de suprema felicidade e transporte interior.

Ele resistia às súplicas para que partisse na madrugada avançada. Não conhecia limites para arrancar-lhe saliva e micropartículas de uma boca a essa altura sangrante. Nem doía. Com sangue e afeto, minha querida, ele diria. E olhava-a, e sussurrava coisas ao ouvido, e se espantava com o próprio torpor. O dela não era menor. Viram-se na intimidade, meio perplexos, mas concentraram toda a energia em uma sucessão de beijos tão íntimos que nem o sexo mais explícito faria reproduzir. Ela gostava especialmente quando ele agarrava-se aos cabelos a essa altura desgrenhados dela, neles introduzindo aqueles dedos longos e magros. Houve um instante de contemplação, ainda velado pela timidez daqueles novos amantes, das longas pernas dela, dos excessivos e fartos pêlos dele.  Tudo à vista na penumbra escancarada.

Finalmente ele partiu, ela com o cheiro dele entranhado pela boca e vizinhanças. Um cheiro absurdamente bom e agradável. Queria mais daquele cheiro, daquela boca carnuda e antropofágica, daquele corpo imenso encimado por ‘aqueles’ olhos. Aquele olhar. Dormiu sob o efeito anestésico daquele encontro. Acordou com a boca multiplicada por três, enorme, carnuda, inchada, exangue. Então deixou-se devanear, vivendo até que novamente estivessem olho no olho, boca na boca, ele nela, ela nele.

2 comentários:

  1. Antropofagia/Antropomagia. Tanto quanto uma ilha tropical flutuando em um copo que tem uísque escocês servindo de mar. Tanto quanto o orgasmo sensorial. Tanto quanto o orgasmo estético. Dente, língua, coração. Forma, som, cor. A emoção é a mesma. A intensidade é o predicado e não o sujeito.

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