quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sobre aquele ‘beijo no asfalto’


Tadeu de Oliveira      

Colocado em cartaz pela primeira vez em 1981, o filme O beijo no asfalto de Bruno Barreto, baseado na obra de Nelson Rodrigues, revela nuances do “jornalismo canalha” praticado por muitos profissionais da imprensa brasileira e sobre questões que envolvem a sexualidade, pilares temáticos das obras de Nelson. O cineasta manteve os diálogos da peça no filme, com pequenas adaptações (cacos) que não interferiram no conteúdo da obra.

Um homem é atropelado por um ônibus na praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Antes de morrer, ele pede um beijo a Arandir (Ney Latorraca), jovem que passava pelo local. Este concede o que lhe foi pedido. O repórter Amado Ribeiro (Daniel Filho), do jornal Última Hora, presencia o atropelamento e o beijo e vislumbra naquele acontecimento a notícia do ano.

Depois de anotar o nome e o endereço dos dois envolvidos, ele exige que Cunha (Oswaldo Loureiro), delegado corrupto, o ajude a transformar "o beijo no asfalto" em manchete do Última Hora. O delegado aceita a proposta do repórter por causa de uma denúncia que surgiu na imprensa: Cunha deu um pontapé na barriga de uma grávida, provocando-lhe um aborto.

A idéia é criar uma história para “limpar” a imagem do delegado e exaltar a figura do repórter com a venda de jornais em grande escala. A partir daí, Cunha e Amado forjam testemunhas, cometem infrações e chantageiam pessoas. Eles transformam um beijo de piedade num caso amoroso e macabro entre dois homens.

O jornal estampa o caso em manchetes e na cidade ninguém fala em outro assunto. Arandir vira motivo de gozações no emprego e acaba tendo que se demitir. Aprígio (Tarcísio Meira), pai de Selminha (Cristiane Torloni), que é esposa de Arandir, intriga-o com sua mulher e, mesmo apaixonada, ela começa a duvidar do marido. Logo toda a cidade está acreditando na homoafetividade de Arandir.

Quando a história ameaça ficar sem força, Amado Ribeiro transforma o caso num crime e reúne indícios para provar que Arandir é criminoso. A versão defendida por Amado é que Arandir era amante do atropelado e que jogou-o contra o ônibus. Em pouco tempo, todos se colocam contra Arandir e ajudam a polícia na hora de forjar as provas do crime.

Ao jornalismo o status quo
O lado negro da imprensa sempre foi uma constante nas obras de Nelson Rodrigues. Não poderia ser diferente. Filho do poderoso jornalista Mário Rodrigues, Nelson conviveu e aprendeu com as atitudes do pai. Magnata da imprensa carioca nos anos 20 e 30 do século XX, Mário usou e abusou de práticas lícitas e ilícitas para beneficiar seus interesses e de seus aliados na busca pelo poder, usando as páginas dos jornais como linha de front em suas batalhas.

Seguindo carreira no jornalismo ao longo de toda a sua vida, Nelson conviveu com tudo que cerca os bastidores do fazer jornalismo. Além disso, conviveu com profissionais que sempre viraram personagens de suas histórias. Em O beijo no asfalto, Amado Ribeiro, repórter do jornal Última Hora, foi o escolhido. Amigo de Nelson, ele não se preocupou com a imagem negativa com que foi retratado no filme. Pelo contrário, ao saber da homenagem, Amado leu a obra e agradeceu a Nelson com euforia, ressaltando que na realidade ele era bem pior que o personagem.

Do asfalto para a eternidade
Apesar de ter sido escrita em 1961, a peça possui um caráter absolutamente atual. Temas como a busca enlouquecida da grande imprensa para vender jornais, a transgressão às regras do bom jornalismo, as relações profissionais promíscuas entre jornalistas e outros profissionais, o poder da imprensa diante da sociedade, como uma falsa notícia pode devastar em pouco tempo a vida das pessoas e o preconceito que a sociedade brasileira tem com os homoafetivos são retratos que não envelhecem em nosso cotidiano.

Nos extras do DVD lançado em 2005, Bruno juntamente com Daniel Filho, comentam o filme e realçam que, na época em que ele foi rodado, a ditadura militar ainda vigorava no país, o que ajudou o longa-metragem com relação ao interesse do público, pois existia um clima no Brasil onde chocar as autoridades estabelecidas era quase um dever de quem estava envolvido na produção cultural do país e de quem consumia este tipo de produção.

As cenas fortes, como as torturas praticadas pelo repórter em Selminha, fazem parte deste contexto. Segundo ele, cenas como esta serviram para alertar a sociedade do que estava acontecendo nos porões da ditadura. A relação promíscua entre imprensa e polícia também ajudou a propagar esta ideia. Em todas as suas peças, Nelson colocava no lugar destinado ao tempo da obra, no roteiro, expressões como “a peça pode ser encenada em qualquer tempo e em qualquer lugar” e “ATUALIDADE”, com letras maiúsculas.

Não era nenhum exagero ou prepotência. Em julho de 2007, O beijo no asfalto ganhou uma versão em quadrinhos feita por Arnaldo Branco e Gabriel Góes. Os diálogos do texto original foram mais uma vez mantidos. Ainda em 2007, Nelson Rodrigues foi o autor homenageado na Feira Internacional do Livro de Paraty (FLIP), e a peça foi encenada em forma de monólogos por grandes nomes da cultura brasileira como Nelson Motta.

As grandes ideias atravessam os séculos. É a atemporalidade delas que constroem os grandes gênios. Nelson Rodrigues sempre soube disso.

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