segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O outono de uma senhora agastada

Mulher com um cigarro, Picasso, 1901

Stella Galvão

Estava vazia, sem vontade de fazer nada nem ir a parte alguma. Vivera longos 50 anos e já se via cansada. Não tinha nem sequer vontade de correr em direção a uma onda forte para quebrar as costelas com o impacto. Ou, talvez, colocá-las no lugar. Nem o chá daquela folha vivicante poderia libertá-la da sensação de inutilidade. Era possível que a vida terminasse logo. Ou não, que perdurasse indefinidamente, até que as carnes se tornassem flácidas. Irremediavelmente flácidas, quero dizer. Tinha preguiça do esforço cotidiano para manter a disposição, afetando uma jovialidade que não tinha mais, lá onde a alma se encontrava com o ânima.

Foi com este estado de ânimo a uma localidade fora de rota com o firme propósito de experimentar sensações limítrofes de abandono e fuga. A aventura durou 24 horas. Seria uma idealista, uma alma em busca de ocupação, em um assomo de loucura para mudar radicalmente de vida? Nada, apenas aquele vazio besta que vive acometendo as pessoas socialmente desintegradas. Elas fazem de conta que não percebem e seguem a rotina, o trote dos dias, sem dispensar lenitivos. Álcool, paixão, cigarro, TV, outras drogas, qualquer coisa. Podia até mesmo recorrer ao amigo que cobiçava seu velho corpo cansado e alquebrado. Era mesmo muito doloroso viver.

Naquele rincão distante para onde empreendera fuga rápida e inconsequente, o que contou mesmo foi o desfile de arte nos espaços próprios, especialmente aquela arte talhada por mãos que viveram em estado catártico, tendo uma natureza exuberante em volta. Dividiu-se, à falta de imersões em caldos gordurosos de galinha, entre dois caroneiros de beira de estrada, Gonzalez e Fabrício, ambos de estatura mediana, longilíneos, topete contido e um certo olhar desafiador, mas banais. Não valiam o desgaste de uma paixão arrebatadora, nenhum dos dois. E ela não queria arriscar coisa alguma além da própria vida. É certo que era viciada em cappucino e cremes mentolados com os quais besuntava-se diuturnamente. Sem estes dois itens, um matutino e vespertino, outro noturno, a vida podia se acabar num átimo.

É preciso relatar um fato curioso nesta vida meio secular. Por volta da época em que virou cinquentona, ela decidiu lançar-se na prostituição. O problema era o fato de agir como uma puta sensível e mal resolvida, como são todas, ainda que não demonstrem por puro profissionalismo. Porque sabem que o ofício não comporta certos apegos inconsistentes. Demonstrações de fragilidade, então, Diós, era suicídio líquido naquela atividade. Pois lançou-se nessa direção não sem antes dar-se conta que lhe interessava aquilo como tentativa última de estar em face de corpos masculinos em atividade explícita com ela. Na verdade estava meio sem vontade de estar com homens na intimidade, mas também não cogitava voltar-se para as do seu sexo. Achava bizarro o sexo entre duas mulheres. Entre homens, nem tanto.

Em pouco mais de quatro meses de disponibilidade, só apareceu um cliente. Ele a levou para jantar, conversaram e riram. Uma graça o rapaz, ainda que meio feio do ponto de vista aristótelico – essa coisa terrível das proporções, simetria e harmonia. Desejava ter sido contemporânea desse grego notável, ainda que na época e no lugar que viveu, as mulheres fossem pouco menos que reprodutoras e artefatos das casas. Queria era ter sido um aluno devoto, embrião de discípulo filosófico, ao mesmo tempo amante, primeiro de Platão. Desejava ardentemente ter freqüentado a Escola de Atenas, depois a Academia, finalmente prostrar-se aos pés do cavalo de Tróia em busca de um mítico lugar no panteão dos deuses.

Os clientes rareavam por duas razões principais. A primeira era uma certa idiossincrasia. Não suportava a ideia de se exibir, em fotografias mostradas a estranhos, desprovida de roupas. A segunda era de natureza vocabular. Tinha o hábito, essa mulher, de recorrer a palavras em desuso, de esgrimir argumentos que exigiam alguma capacidade de discernimento e inferência por parte do interlocutor. Enfim, um desastre. Para sorte dela, manter a despensa em condições de alimentar sua prole não dependia daquela fonte de renda. Gracias! O único dinheiro amealhado nessa única ocorrência, por sinal muito agradável, foi prontamente utilizado para renovar o estoque de dois dos licores que mais apreciava.

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