domingo, 19 de setembro de 2010

A arte de pesquisar...o universo da sexualidade

 
Tadeu Oliveira                                                         


O livro De perto ninguém é normal, da antropóloga carioca Mirian Goldenberg é um bom exemplo de como uma pesquisa acadêmica deve ser realizada. Publicado em 2004, a obra é um estudo sobre corpo, sexualidade, gênero e desvio na cultura brasileira.

Devido à concisão, precisão e clareza dos textos da autora, ele merece um tratamento especial para cada capítulo. É o que será feito a partir de agora. Não é todo dia que se encontra um livro baseado em uma pesquisa acadêmica que não seja chato, pretensioso e não cheire a mofo.                                                                                        
Na apresentação do livro, Goldenberg revela detalhes do trabalho de um pesquisador. A autora cita como exemplo as atividades que desempenhou na coleta de dados para ele:

“Utilizo milhares de questionários aplicados em indivíduos das camadas médias urbanas cariocas para discutir determinados modelos de corpo e novas formas de conjugalidade, observo a telenovela e matérias da mídia impressa para compreender as representações de família existentes, analiso trajetórias de militantes políticos e líderes guerrilheiros para comparar os papéis considerados masculinos e femininos em nossa cultura”.(p.9)

No primeiro capítulo, A conversão do pesquisador, a autora discorre sobre a responsabilidade e os dilemas que o pesquisador enfrenta na escolha do tema a ser trabalhado. Ela toma como exemplo os procedimentos na construção de outra pesquisa sua que gerou livro, A Outra: estudos antropológicos sobre a identidade da amante do homem casado: “O estigma do tema escolhido recai também sobre o pesquisador que se interessa por ele”. (p.18)

Em seguida, relata a impressão da sociedade diante da escolha. Mirian revela que todos a perguntavam se ela foi ou é a outra e até mesmo se sofreu ou sofre por seu marido ter outra. Na primeira matéria divulgada sobre o livro, a repórter do Jornal do Brasil teve a preocupação de não misturar o tema da pesquisa com a personalidade da autora: “É um trabalho que pode ajudar a compreender as relações familiares no Brasil, diz Mirian, com a tranqüilidade de quem, aos 33 anos, não é a outra de ninguém”. (p.19)

A citação de Mary Douglas na obra é perfeita: “A poluição transmite perigo pelo contato”. (p:19). Depois, a autora elucida sobre as atitudes assépticas de grande parte da sociedade diante de temas pouco usuais: “O simples contato com um tema impuro, como o adultério, ou com pessoas em “posições intersticiais, anti-sociais, desaprovadas” pode provocar reações semelhantes àquelas inquietações provocadas pela sujeira, pela ambigüidade ou pela anormalidade”. (p.19).

Nem por isso Mirian abandonou o tema: “Posso dizer que, a partir de então, construí uma “carreira” nas ciências sociais, estudando temas percebidos como socialmente desviantes ou estigmatizados.”(p.19) Apesar de tanta desconfiança e “censura branda” de parte da sociedade, a autora conseguiu a recompensa por seu trabalho. Um novo perfil destas mulheres foi retratado:

“(...) ao analisar os discursos de oito amantes de homens casados, das camadas médias urbanas, ser a Outra não torna essas mulheres diferentes das de sua geração e meio social. Elas são modernas, intelectualizadas, independentes, e vivem uma experiência amorosa repleta de conflitos e contradições, que podem existir em mulheres que jamais foram amantes de homens casados. Que não são mulheres malignas, perigosas, fatais ou ameaçadoras, como frequentemente representadas.”(pp. 17,18)


Mirian Goldenberg também enfrentou dilemas quanto a outro trabalho de pesquisa que desenvolveu, Toda mulher é meio Leila Diniz, a trajetória da atriz que ruborizou a ala conservadora do país em plena ditadura militar:

“Ser ou não ser nativo, identificar-me ou não com o comportamento da atriz, sentir-me vivendo seus dramas e alegrias, aprender com ela determinadas atitudes passaram a ser questões da pesquisa”.(p.22)

Como percalços existem desde que o nada virou tudo, não seria diferente desta vez. Mirian teve dúvida se escreveria sobre quantos parceiros sexuais Leila Diniz teve durante sua vida ou não. Em conversa com o orientador Afrânio Raul Garcia Júnior, ela percebeu que, ao cortar depoimentos a respeito disso, estaria autocensurando dados da pesquisa. Então, o orientador perguntou se os irmãos de Leila queriam que tais informações fossem omitidas. Mirian não pensou duas vezes:

“Enviei, então, a tese aos quatro irmãos e, para minha surpresa, eles não exigiram nenhuma mudança no texto final. Alguns poucos palavrões foram cortados e uma das irmãs pediu que eu tirasse o número de parceiros sexuais que disse ter tido ao longo de sua vida e deixasse apenas: “Eu não sei com quantos homens transei na vida, mas foram muitos, não dá nem pra contar”. Meu orientador concluiu, então, que eu iria censurar algo que os próprios irmãos queriam falar para talvez ajudar a compreender que a trajetória de Leila Diniz não correspondia àquela do mito construído pelos livros, filmes e matérias publicadas na imprensa”.(p.24)

Mais uma vez, a pesquisa rendeu uma nova perspectiva sobre o tema estudado:

“Estudar a trajetória de Leila Diniz significou compreender como foi construído um mito em torno de sua figura, mas também entrar em contato com sua vida íntima, familiar, por meio da leitura de seus diários e de entrevistas com seus quatro irmãos, tios, primos e psicanalista”.(p.22)

“Acredito que mostrar o “não-dito” nestas narrativas, os silêncios, as lacunas, se fez necessário para humanizar esta mulher que se tornou tão marcante em nossa história recente”. (p.25)

A seguir, uma citação “bíblica”:

“(...) As pesquisas que realizo e oriento demonstram que compreender melhor o outro ajuda não só a compreender melhor a nós mesmos mas também a revelar aspectos obscuros, ocultos, silenciados de nossas próprias vidas e da cultura na qual estamos inseridos. Subjetividade e objetividade estão sendo transformadas, reinventadas, explicitadas em nossas pesquisas”(p.31)

Sem mais definições ou julgamentos. Quem quiser saber algo a mais sobre Mirian e seus livros, PESQUISE! Se tiver preguiça, aguarde o próximo “texto torto”.

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