terça-feira, 31 de agosto de 2010

O inferno da sedução pós-moderna


Tadeu Oliveira

Escrever é um tremendo exercício para exorcizar nossos demônios. Mandá-los de volta pra onde não sabemos de onde vieram. Acontece também de surgirem ótimas produções de ‘demônios’ das ciências com olhar arguto sobre o social e que trafegam com desenvoltura no terreno das idéias provocadoras. E o demônio da vez se chama Jean Baudrillard e sua peripécia diabólica, o livro Da Sedução.
Escrito em 1973, o livro esmiúça e estabelece (sob a ótica da hiper-realidade), a sedução como a pedra do gênesis de nossa sociedade, motor do ser humano, primeiro impulso de nossa alma. Nesta afirmação, Baudrillard combate os valores principais da psicanálise freudiana, na qual aquilo que realmente responde ao nosso primeiro grito da consciência é a sexualidade.
         Sua afirmação consiste em uma análise dos fatores midiáticos pós-modernos em setores da vida cotidiana como o sexo, a política e a economia, a chamada hiper-realidade explicada pelo autor neste trecho:

“O hiper-realismo não é o surrealismo, é uma visão que persegue a sedução à força da visibilidade. Ele nos “dá mais”. Isso já é fato com respeito à cor no cinema e na televisão: dão-nos tanto, a cor, o contorno, o sexo em alta fidelidade, com os graves e os agudos (a vida, quê!), que não há mais a acrescentar, ou seja, a dar em troca. Repressão absoluta: dando-nos um pouco demais, cortam-nos tudo. Desconfie do que é tão bem “entregue” sem que nunca o tenha dado.” (p.38)


Baudrillard defende que a sedução é um fator de exclusividade feminina (o que qualquer ser do pequeno universo masculino já sabe desde que veio ao mundo). Como o livro foi escrito na época da “revolução sexual” – movimento feminista pelos direitos iguais entre homens e mulheres –, ele surge como um combate a esta aparente “guerra dos sexos”, realçando que as mulheres podem de fato deter o poder supremo do seu corpo e mente, desde que assim desejem:

“Que opõem as mulheres, no seu movimento de contestação, à estrutura falocrática? Uma autonomia, uma diferença, uma especificidade de desejo e de gozo, um outro uso de seu corpo, uma fala, uma escrita -  jamais a sedução. Envergonham-se dela como de uma encenação artificial de seu corpo, como de um destino de vassalagem e de prostituição. Não compreendem que a sedução representa o domínio do universo simbólico, ao passo que o poder representa apenas o domínio do universo real. A soberania da sedução não tem medida comum com a detenção do poder político ou sexual.” (pp.12 e 13)

No decorrer do livro, as afirmações neste sentido sempre se fazem presentes, com o autor buscando reafirmar suas ideias: “Estranha e feroz cumplicidade do movimento feminista com a ordem da verdade! Pois a sedução é combatida e rejeitada como desvio artificial da verdade da mulher, aquela que em última instância achar-se-á inscrita no seu corpo e no seu desejo.” (p.13)

Uma análise do mercado pornográfico então incipiente e da sociedade de consumo também cabe nesta obra. Neste instante, Karl Marx parece ‘ter baixado’ no autor. Sua veia socialista é escancarada:

“O pornô diz: existe sexo bom em algum lugar, pois sou sua caricatura. Na sua grotesca obscenidade, ele é uma tentativa de salvar a verdade grotesca do sexo para devolver alguma credibilidade ao modelo sexual enfraquecido. Ora, eis aí toda a questão: existe sexo bom, existe simplesmente sexo em algum lugar, sexo como valor de uso ideal do corpo, como potencial de gozo que possa e que deva ser “liberado”? É a mesma questão colocada à economia política: além do valor de troca como abstração e da desumanidade do capital, existe uma “boa” substância do valor, um valor de uso ideal das mercadorias e das relações sociais que possa e deva ser ‘liberado’?” (p.45)

Ainda há espaço para pequenas epifanias niilistas. Baudrillard, num acesso de Nietszche, vocifera pequenas centelhas divinas e profanas contra a verdade e o que mais restar ao redor. Segue uma pequena coleção delas: “Hoje nada é menos seguro do que o sexo, por trás da liberação de seu discurso. Hoje nada é menos seguro do que o desejo, por trás da proliferação de suas figuras.” (p.9); “A sedução sempre é mais singular e sublime que o sexo, e é a ela que atribuímos preço maior.” (p.18); “A obscenidade tem um futuro ilimitado.” (p.40); “O real aumenta, o real amplia-se, um dia todo o universo será real, e quando o real for universal será a morte.” (p.41). Nietszche total!
As ideias exploradas por Baudrillard em Da Sedução condizem com nosso cotidiano de uma forma assustadora. Não por proporem algo tresloucado ou fantasioso, mas sim por serem de uma obviedade ululante. Não é sempre que atentamos para a loucura pós-moderna e pensamos naquilo que nos rodeia, no mundo que nos seduz de forma tão sutil e ao mesmo tempo tão violenta. Os outdoors, os folhetos, os banners nos sites, as imagens no cinema e na TV, o universo virtual, todos eles tentam nos seduzir.
No momento de maior distração, já estamos no meio do turbilhão de ofertas, do universo supostamente ao alcance de nossas mãos. A hiper-realidade é mais palpável do que a consciência pode crer. Ela está dispersa por baixo dos véus da verdade absoluta, da intimação ao consumo exacerbado, da publicidade que dilacera as mentes dos desavisados.

          Antes a sedução fosse apenas uma dádiva feminina, restrita às nuances dos relacionamentos entre homens e mulheres. Esta dádiva é usada na publicidade aos montes. Mulheres nuas (ou quase) são os carros-chefe das campanhas de venda dos mais variados produtos. Ou até mesmo a própria beleza feminina sem a utilização do nu, como podemos perceber em comerciais de construtoras e concessionárias de carros.

          A publicidade, símbolo máximo do capitalismo, se apoderou da sedução feminina e gerou a partir desta uma forma de ganho de capital, instigando os mais primitivos instintos masculinos. Todos os homens, por mais idiotas que  sejam, sabem do poder que as mulheres exercem sobre eles.

          Baudrillard tem razão. E sua razão incomoda. Não é fácil parar para pensar sobre nosso admirável mundo louco. Multifacetada, a vida tem tantas faces e tantos véus que qualquer tentativa de explicação não cabe num artigo. Na sociedade dos simulacros, nada é o que parece. Ou é? Chega de pensar. Pensar enlouquece.

Nenhum comentário:

Postar um comentário