domingo, 29 de agosto de 2010

Encontro às cegas

Stella Galvão

Marcaram de se encontrar numa cafeteria, lugar da moda no país tropical. Talvez, ecos daquela atmosfera intimista de filmes franceses em preto e branco para descartar a fumaça dos cigarros. Uma estética que havia ficado para trás, mas cujo encanto permanecera, mesmo em locais que desafiavam a curva dos 30º celsius day by day. Falavam-se por celular. Estou agora em tal lugar, acabei de desembarcar nas proximidades daquilo conhecido e assim ia, aumentando a expectativa em torno do encontro às cegas. Ela anunciou como pista para o reconhecimento uma grande e exuberante bolsa preta. Ele fez eco: estou de preto. Estranho, ela pensou, já imaginando um agente funerário típico ou um egresso do universo punk. Mas já estava ali e a curiosidade era mesmo uma chama que ardia sem cessar naquela alma perscrutadora.

Então, toda confiante, se posicionou logo na entrada da livraria que levava ao tal café. Passou um calvo, depois um corpulento e finalmente surgiu o tal homem de preto. Baixinho mas charmoso, com aqueles tênis moderninhos que devem parecer velhos apesar de novos. Já quase quarentão mas adepto dessas modas que dão um ‘up no visu’. Cumprimentarem-se cordialmente, sem grandes arroubos. Sentadinhos no reino dos cafezinhos, ele dedicou-se a examiná-lo com o olhar averiguador de um médico legista. Ela encarnou pela vigésima vez o papel de “tímida se esforçando para parecer atirada”. Ela se agradou pelo jeito algo simplezinho e ao mesmo descolado do sujeito. E havia um par de olhos de cor indefinida, meio chumbo, tal vez, ou grafite. Um daqueles matizes meio impossíveis produzidos pelas misturas propostas pela indústria de tintas, de veículos automotores etc.

Mas foram ao que realmente importava, além do pedido comum de café expresso bem forte e espumante. Acertar as bases do programa íntimo, valores, limites, avanços, possibilidades e etc. Ele não negou que esperava encontrar uma deusa pronta e acabada. Ela, bonitinha, mas não escultural, alegou sua condição de amadora para aceitar uma sugestão de decréscimo no valor. Discreto, para não se ver em situação muito afrontosa e não sofrer um duro revés em sua consciência de si, do seu poder de sedução. Se era parco, pouco importava, contanto que houvesse. Tudo combinado, ele ficou de apresentar-se quando sobrasse o valor acertado na caixinha de todo mês. Ela parou de fazer as unhas enquanto espera os caraminguás do funcionário público, mas se delicia em saber o que a espera no fundo dos olhos sem cor do moço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário