sexta-feira, 9 de julho de 2010

Libélula em vôo rasante


Stella Galvão


A repórter deu uma olhada na pauta daquele dia e não pôde evitar um largo e silencioso sorriso. Moleza. Consistia em encontrar-se com o homem que havia galgado múltiplos degraus desde a sua existência banal numa cidadezinha do interior brasileiro. Ela deveria aproveitar-se daquela ascensão quase meteórica, embalada sabe-se lá por quantas concessões. O homem, inclusive, havia escapado ao pântano em que soçobraram vários, para depois retornar, limpinhos e cinicamente recuperados do enlameamento.

Ela já era tida na empresa em que atuava como a jóia da coroa em meio a outros articuladores bem arrumados. Afinal, nenhum deles tinha aquele par de pernas. Então caprichou no conjuntinho bem justo, estratégico para realçar um traseiro bem fornido. O decote em Y, quase um V maiúsculo, faria o político ceder mais um pouco em favor dos interesses da multinacional que ela representava com galhardia. Foi anunciada com pompa para o encontro a portas lacradas. Ficaram ali, absortos, a bela e a fera, enquanto as senhas eram transferidas de uma memória para outra. Quando fez a última pergunta já descambando para o plano pessoal: o sr. é feliz no poder?, ele cochichou-lhe algo ao ouvido. Ela refez o sorriso e deixou o recinto toda bamboleante, ele com as pernas bambas.

Dali para o ninho de amor foi um pulo. Eles se encontravam em tardes de recesso, madrugadas de acordos de lideranças, noites de votações prolongadas. Só uma amiga e a terapeuta partilhavam dessa sua nova fase outonal. O homem era feio que doía, já caminhando para a terceira idade, mas aparecia com uns ternos bem cortados e gravatas impecáveis. O calcanhar de aquiles dela: gravatas de boa procedência, mesmo que decorassem o peito de um irmão gêmeo do Quasímodo, corcunda imortalizado por Victor Hugo. Ela até poderia ser confundida com a Esmeralda original do romance, toda voluptuosa, mas havia um porém. Ao contrário dessa heroína, ela não circulava entre despossuídos.

Era o tipo de moça que não se contentava com meia dúzia de carinhos ou meros rompantes de desejo. Mas ele não deixava por menos, e sussurrava Neruda aos ouvidos dela: "Áspero amor, violeta coroada de espinhos, cipoal entre tantas paixões eriçado (...)". Mas, como nem só de gravatas e belas palavras se nutre um amor assim, arrebatador, havia também presentes às dezenas, bons jantares, vinhos maturados em barris no Velho Continente, lingeries, perfumes e outros quetais. A coisa caminhou entre desfalecimentos mútuos até que ele se deu conta que o matrimônio, celebrado com interesses vários além do ‘sim’ de sua senhora, estava por um fio. Melhor refazer o pulo para o lado de cá da cerca. Não faltariam festinhas com acompanhantes jovens, bem sadias e ávidas por brindes de empresas sólidas e construtivas.

Quando se viu sem acesso aos bastidores, ela decidiu encarnar uma libélula em vôo rasante. Com ar cândido e faceiro, fez saber a meia dúzia de interlocutores de sua excelência que sua boca produzia mais que sensações – poderia alcançar altos decibéis, relatando porquices ocultas sob o véu da imagem impoluta do senador. Ele, mimosamente, por meio de um intermediário, fez saber à moça que ela corria sério risco de prostrar-se para sempre na horizontal. Uma ameaça explícita, sem véus. A pobrezinha, temendo evoluir para a condição de presunto fresco, calou-se. Poupou o amante, mas não os ouvidos alheios. Conseguiu uma boquinha em programa de TV de segunda linha, onde passa do fogão às lingeries, delas aos dramas alheios, com uma desenvoltura que só vendo, agora encerrada dentro de uma câmera escura, filmada quase até as vísceras.

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