quinta-feira, 3 de junho de 2010

Bendita nudez


Stella Galvão

Era uma vez uma jovem freira, bela e vistosa. Ela havia feito seus votos de devoção desde novinha, aparentemente sem pressão familiar. Assim, ela envergou o hábito cinza com a gravidade de uma Joana D’Arc a caminho da fogueira, crente e convicta. E falando em fogo, ocorria desta alma pura ser consumida por pensamentos não exatamente castos. Donzela que havia sobrevivido às investidas de um sem número de moçoilos encantados com suas formas opulentas, ela reagia àquelas vontades com banhos demorados. Também consumia potes de doce de leite, o que a deixava mortificada. Se por um lado aplacava uma ânsia devoradora, de outro atiçava o pecado da gula.

Assim aflita, decidiu consultar uma psicóloga para desabafar. Contou com miudeza de detalhes como era acossada por labaredas em sua intimidade, tremendo de vontade de amar. Mas o que ela queria, e persistia nisso, era amar unicamente a Deus. Algumas sessões se passaram até que, na véspera de embarcar para uma temporada de preparação espiritual em solo Vaticano, ela foi surpreendida pela súbita abertura da porta do consultório onde se consultava.

Foi quando surgiu um homem quase nu, parcialmente coberto, todo respingado de tinta, do cabelo à unha do dedo mindinho. Numa das mãos, uma penca de livros, noutra, o rolo de tinta ainda fresca e pingando, espalhando o rosa no trajeto. Era o psiquiatra que ocupava a sala vizinha, naquele dia encarnando um dublê de pintor.
A freira pulou da poltrona e pôs-se a gritar, hipno¬tizada pela visão do masculino ali, a poucos metros dela, e quase sem roupa. A cor da cueca causava mesmo uma ilusão de ótica. Estaria ele nu? A psicóloga teve uma crise de riso. E o psiquiatra ali, pasmo, sem entender nada. Depois da eternidade de um minuto, ele finalmente conseguiu se explicar. Dito isso, e após as desculpas de praxe, correu de volta para sua sala.

Aquele corpo ali teria sido produto da imaginação fértil da jovem freira, justamente curiosa pela visão de um homem despido? A entrada em cena do urologista de cueca foi um achado terapêutico. O tema da sexualidade reprimida da freira voltou ao lugar central do processo. Depois de contemplar um homem em roupas de baixo, ela repensaria a necessidade de um encontro com outro ser, carnal? Ou se aferraria aos seus votos castos?

Com questões assim no ar, ela embarcou para o Velho Continente, onde permaneceu por vários meses. De volta à psicoterapia para retomar o tema, dessa vez com uma abertura surpreendente. Falava agora, às claras, do que lhe provocava a visão de homens que a atraíam. Chegou mesmo a cogitar assumir sua sexualidade, dissimulando essa opção para as superioras e colegas de claustro. Só a deteve a crença no Deus onipresente, que tudo vê, do qual nada escapa. Mas, em longas permanências na capela Sistina, diante de uma série de anjos despidos graciosamente por Michelangelo, ocorreu a essa vocação ainda incipiente para as coisas da alma que o nu é mesmo belo. Que feio era o psiquiatra, assim tão banal, tão palpável, tão real.

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